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domingo, 21 de outubro de 2012

LEMBRANÇAS...

 
Ao lembrar coisas do meu passado é obrigatório homenagear alguém que também foi muito importante na minha vida e na vida de muitas adolescentes e jovens do Sobral.
Fernanda Vale
Trata-se da D. Fernanda Vale. A “casa dos Vale” foi um marco muito significativo, mais um, na vida de muita gente que por lá passou. Era uma casa de sonhos e fantasias, algo estranha, por vezes quase mágica. Havia magia naquela casa! Ali tudo podia acontecer, desde: bordados e costura a teatro, marionetas, histórias pitorescas, poesia, declamação, “festa” e gargalhadas, loucuras e ……… fantasmas. Aliás, os fantasmas abundavam naquela casa. A porta da rua era meio esquisita, a escada medonha, fazia ruídos que me faziam subir e descer sempre a correr. Quando se chegava lá acima abria-se a porta e tínhamos o lado esquerdo e direito, com um pequeno corredor pelo meio. Nós dirigiamo-nos logo para a sala dos bordados mas tínhamos que passar primeiro pela cozinha, interior, escura e negra, cheia de “tralhas” velhas e ali reinava a D. Marquinhas, quase sempre chegada da rua, donde trazia os fracos mantimentos para o almoço da família e as cabeças de peixe e guelras para os   gatos que viviam no telhado. Da cozinha passávamos à casa de jantar e depois à sala dos bordados. É importante falar desta sala de jantar. Tinha móveis antigos, muito gastos; tinha máquinas de costura; algumas malas de porão e, sobretudo, tinha uma janela. Era a janela mágica. Sobranceira a vários telhados da vizinhança, ela tinha gatos que ali permaneciam todo o dia e ali comiam os célebres restos de peixe que a D. Marquinhas trazia do mercado. Eram mansos e meigos, tal como os pombos que vinham comer os restos de pão duro que, ás vezes, sobrava. 
Havia uma nesga nos telhados que nos deixava ver, nas soalhentas tardes de verão, os filhos dos Condes Sobral, tomarem banho na piscina, coisa única na vila. Nós fazíamos despiques e sorteios a ver quem ficava com quem, tudo muito secreto e, ao mesmo tempo, divertido. A D. Fernanda ajudava à festa e até a D. Marquinhas dava as suas dicas. Nessa janela havia também um aparelhómetro muito rudimentar, que servia para medir a humidade atmosférica e a quantidade de chuva caída durante a noite, informação essa que a D. Marquinhas enviava para o Instituto Meteorológico, não sei bem, nunca percebi  para que era aquilo, mas que era esquisito e artesanal lá isso era.
Do lado direito da porta de entrada havia o escritório com uma secretária e vários armários repletos de livros que eu, muito dada à leitura, ia devorando a pouco e pouco. Daí passava-se ao quarto da D. Fernanda e da filha Maria Fernanda, nossa colega da escola primária, e também da D. Madalena Vale quando vinha de Lisboa, onde era modista de gente fina. Esta era a família Vale. Aquela casa para nós era uma universidade do conhecimento, pois nela ouvíamos falar francês, ouvia-se história universal, ciências, fazia-se teatro, um bocadinho de pintura e, sobretudo, aprendia-se a viver, era uma escola de vida autêntica, de quem já tivera melhores dias e que agora vivia dos enxovais das noivas, que eram bastantes graças a Deus. Pelo Carnaval abriam-se os baús que estavam no quarto da D. Fernanda – bem! era demais……….
"Abertura dos baús" - Carnaval 1945
Vestidos antigos, chapéus, rendas e tules, plumas e malas, um espanto, e nós ríamos, ríamos, com gargalhadas saudáveis e entrávamos no mundo da fantasia, no mundo mágico do faz-de-conta, era a loucura total.
Lembro-me que aos domingos, à tarde, tirávamos à sorte, com moeda ao ar, junto do coreto da praça, aquela que se  atrevia a entrar no café Central, estabelecimento só para homens, para comprar chocolates ou chupa-chupas, tudo sob o olhar cúmplice da nossa preceptora e amiga D. Fernanda e lá íamos felizes para o passeio pelo campo.
Frequentadoras Casa dos Vale - 1955
Bem, já vos falei dos meus amigos Jãojão e Catila; da queridíssima D. Mariana e agora falo-vos da minha professora de bordados e de tantas outras coisas preciosas, D. Fernanda Vale. Havia muita coisa a dizer dessa casa mas o tempo urge e o pensamento voa…… hoje,  as recordações doem-me no peito e no espírito e deixam-me um sabor amargo na boca. É melhor ficar por aqui. Falar mais desta Senhora é como se fosse possível viver tudo outra vez e hoje eu não quero recordar mais. Tive ou não uma infância,  adolescência e juventude felizes? Faz-me muita pena pensar nos  jovens de agora. Mal nascem são logo velhos, sem culpa nenhuma, apenas porque a velocidade com que se vive agora não lhes dá tempo para serem novos e também porque não existem Mestres como no meu tempo. Talvez esse seja o segredo da minha juventude que já vai nos setenta anos.
Bem hajam todos os meus mestres. Bem haja a “casa dos Vale”
Mimi

3 comentários:

  1. Mimi
    É sempre um prazer ler o que escreve, é pena que escreva tão pouco para nós. Tem uma maneira tão elegante de descrever as suas personagens que me apaixona a leitura. Neste caso especial até me comovi, lembrando aquelas senhoras que nos davam tanto, e que tantos conhecimentos tinham… e como lhes era difícil a vida!
    Tudo tão bem descrito que até me sinto, eu também, naquela curva da escada cujos degraus rangiam, a saltar alguns em claro, por me incomodar o barulho e ali era tão escuro… coisas de adolescentes.
    Li alguns autores portugueses da biblioteca da D. Fernanda mas, talvez por ser mais adequado à minha idade, ficou-me sempre na memória a “Poliana” ou” Poleana”, ou nem duma maneira nem doutra, também não interessa muito o nome, o que me interessou foi o conteúdo, a forma de uma criança ver sempre o lado feliz da vida. Ela jogava sempre o jogo do contente. E era tão bom tentar imitá-la, numa época em que tínhamos todos tão pouco.
    A D. Fernanda sempre muito delicada, transmitindo-nos a sua educação, que se via que tinha tido sido esmerada; e quando nos fazia desmanchar alguns pontos que tinham sido dados mais à pressa (o que eu detestava ter de fazer) era sempre de uma forma branda e delicada. No entanto, era uma pessoa com uma visão moderna da vida e aceitava as “loucuras” da nossa juventude. Recordo a D. Marquinhas, que além de fazer render o pouco dinheiro que tinha para administrar a casa, tinha paciência para nos aturar; e a Senhora D. Adelaide!... Que amor de velhinha!
    Que boas recordações me trouxe Mimi. Felizmente ainda temos a Maria Fernanda, que era mimada por todas as mulheres da casa, por ser o último rebento da Família Vale. Em minha casa sempre se falou com o maior respeito pelo Sr. Vale e por toda a sua família. Eram pessoas muito respeitadas e eu sempre achei de que esta família também contribuiu para a minha formação.
    Maria Alexandrina



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  2. A Mimi, e depois também a D. Alexandrina, presentearam-nos com um relato emocionado das suas recordações "mágicas" da Casa Vale, e enfatizaram o relevante papel social que a D. Fernanda (e família) teve nas suas vidas e de muitas outras jovens do Sobral. Mas daquilo que tenho ouvido de pessoas desse tempo, parece que posso concluir que a Casa Vale foi bastante mais do que isso: foi como que uma “escola”, quase institucionalizada, para outras gerações de jovens sobralenses, e não apenas para o grupo, fotografado, em que se integrou a Mimi. Antes e depois desse grupo houve mais, é essa a ideia que tenho.

    Creio que não deve haver muitos casos similares por esse País fora, tendo especialmente em conta que era uma família que até vivia com algumas dificuldades financeiras. E hoje, Mimi, pensar uma situação idêntica é quase surreal...

    José Auzendo

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  3. Já tinha pensado escrever sobre esta família, a Mimi já o fez e muito bem. Eu, como estou na casa dos 80,comecei mais cedo a frequentar essa casa, e por lá passaram várias gerações: era de bom tom as meninas irem aprender a bordar.

    Esta família compunha-se do pai, o Sr. Júlio Leite Vale, aposentado da Junta Autónoma das Estradas e agente de seguros, a mulher Adelaide Pulquéria Leitão Vale, e três filhos: a D. Maria, a D. Fernanda e o Carlos Vale, jornalista, um revoltado contra o Governo de então: morreu muito novo de tuberculose. Sempre conheci o Sr. Vale invisual: ele descia as escadas e ficava à porta à espera que alguém o levasse à barbearia do Sr. Serreira ou à farmácia Costa, onde passava as tardes. Todas as crianças o ajudavam de boa vontade: o meio tostão vinha sempre para o famoso matacão.

    Feita a apresentação desta simpática família, é bom recordar alguns momentos por mim lá passados. A D. Fernanda foi uma pessoa que acompanhou muitas gerações desde a aprendizagem até ficarem profissionais. Estas ganhavam quatro escudos por dia; as outras não ganhavam nem pagavam. Depois seguiam outros destinos. Foi uma senhora muito importante na formação de muitas raparigas. Recordo quando lhe levavam ovos…Ela fazia gemadas e batia as claras em castelo com açúcar e canela: chamava a isto rápido e barato.

    Além dos bordados, era uma senhora muito actualizada. Lembro-me, no tempo da guerra, de ela ir comprar o jornal e, depois, explicar-nos as notícias…

    Lisete

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